"DESENVOLVIMENTO E IDENTIFICAÇÃO DO TALENTO NO FUTEBOL"

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Texto exclusivo de Júlio Garganta para a revista oficial da FPF.

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INTRODUÇÃO
“Quando uma coisa nos parece completamente óbvia, desistimos de a tentar compreender.”
Bertolt Brecht

O futebol tem vindo a gerar uma crescente adesão de praticantes por todo o mundo, levando a que atualmente milhares de crianças e jovens aspirem a tornar-se futebolistas, seduzidos pela magia do jogo, empolgados pelos magníficos desempenhos de equipas de topo e motivados por notáveis exibições de jogadores como Cristiano Ronaldo e Messi ou de jogadoras como Carli Lloyd e Marta Vieira.

Porque tais intérpretes revelam excecionais qualidades para jogar, que se traduzem em desempenhos extraordinários e consistentes, é comum designá-los como talentos ou afirmar que têm talento. Todavia, nem sempre o uso da palavra “talento” corresponde a um claro entendimento acerca do modo como os desempenhos ocorrem nem das razões que levam a que tal aconteça.

O que leva alguns praticantes a alcançar a excelência desportiva, enquanto outros não o conseguem? Os resultados desportivos dependem, fundamentalmente, do potencial genético de cada indivíduo ou das aquisições operadas nos processos de aprendizagem e treino? Há que dizer que, até ao momento, nenhuma das pesquisas realizadas permitiu concluir que algum ser humano tenha chegado à cúspide da realização profissional e pessoal sem conseguir conjugar compromisso, trabalho adequado, autodisciplina, atitude e oportunidade.

Porém, no futebol parece ainda perdurar a ideia de que os jogadores exímios já nascem com um dom, ou talento natural, que assegura à partida as condições essenciais para alcançarem níveis elevados de expressão desportiva. Esta convicção manifesta-se sob diferentes formas e pode ser testemunhada pelos discursos e práticas recorrentes, de vários atores do fenómeno desportivo.

Trata-se de um entendimento inatista do talento que pode também ser confirmado pela excessiva preocupação com a denominada “deteção de talentos”, através da qual se visa “descobrir” indivíduos que, num dado momento, exibem atributos acima da média. Um dos problemas daí resultantes é que grande parte das vezes a apreciação dos observadores que procuram talento está contaminada por efeitos colaterais relacionados com a idade biológica e a precocidade física dos jogadores, o que leva a que quanto mais velha for a criança ou o jovem, relativamente aos colegas de equipa, maior probabilidade tenha de ser considerada especialmente dotada, ainda que o não seja de facto.

Tal processo tem causado a discriminação negativa de um número abundante de praticantes, pelo facto de estes não revelarem, à data das denominadas “sessões de captação”, as aptidões consideradas primordiais para se tornarem jogadores competentes. Neste caso, ignora-se que o tempo de aprendizagem e a consolidação das habilidades mostram uma elevada variabilidade interindividual, sendo diversas as respostas dadas pelos atletas aos estímulos a que são submetidos, nomeadamente em função das suas idades biológica e cronológica (Garganta, 2009, 2011).

A alusão a estas ideias, crenças e procedimentos afigura-se relevante, porque tem claras repercussões no que respeita às expectativas, exigências e oportunidades que são proporcionadas a quantos pretendem vir a tornar-se praticantes confirmados de futebol. Tal influi nas conceções e práticas de desenvolvimento, identificação e seleção de talentos, bem como nas expectativas, na motivação e no empenhamento dos intervenientes.

No presente artigo pretendemos explicitar alguns argumentos que mostram que o caminho para a excelência em futebol, longe de ser determinado pelo “talento inato” ou por vantagens ocultas, emerge de uma combinação complexa de habilidades, capacidades e competências, tendo em conta as condições de envolvimento e as oportunidades que vão sendo proporcionadas ao longo da vida, e das quais os praticantes aprendem a tirar partido.

A PESSOA NASCE, O JOGADOR FAZ-SE
“Somos o que fazemos repetidamente. A excelência é um hábito.”
Aristóteles (ano 300 a.C.)

O facto de a relação do praticante com o treino e a competição começar a ser construída cada vez mais cedo, justifica que se dedique melhor atenção aos problemas relacionados com a prática informal e formal do futebol, bem como dos modos mais adequados de desenvolver e reconhecer talento.

A convicção de que os seres humanos nascem dotados de talento, ou predestinados para uma dada atividade, tem vindo a constituir um dos maiores obstáculos à evolução das pessoas e das sociedades, na medida em que gera frequentes equívocos e situações de arbitrariedade quanto ao processo de seleção para o desempenho de diferentes funções. Para além disso, o pressuposto de que o talento natural determina o sucesso ou o fracasso leva, inevitavelmente, à menorização do processo de aprendizagem e treino.

No âmbito específico do futebol, a convicção de que os “dons naturais” constituem o pressuposto essencial para justificar desempenhos desportivos de excelência, tem acarretado consequências marcadamente negativas, entre as quais: (1) a predisposição para sinalizar como talentos, praticantes que não têm ainda um tempo suficiente de exposição à prática; (2) a propensão para excluir crianças e jovens, ou para não lhes conceder o acesso a oportunidades de treino e competição idênticas às dos identificados como talentos; (3) a tendência para não reconhecer o treino desportivo como processo capital para desenvolver e atualizar o talento dos praticantes (Garganta, 2009).

Se é plausível entender o talento como um atributo relacionado com o desempenho consistente e acima da norma, num dado domínio, não é menos razoável admitir que, para além de pessoal e intransmissível, o talento é atualizável, ou seja, não é invariável, como aliás o comprovam os percursos de vida de vários desportistas (Araújo, 2004; Garganta, 2009, 2011). Daí que através da aprendizagem e do treino se procure potenciar o efeito da prática sistemática e, simultaneamente, resgatar o praticante ao suposto determinismo genético.

O processo de observação e identificação de talentos consiste no reconhecimento de indivíduos com potencial para se tornarem praticantes de elite. Todavia, muitas das justificações para o talento e para as habilidades excecionais dos jogadores têm-se escorado na ideia de que as competências para jogar se subordinam à presença ou à ausência de determinados atributos, aptidões, virtudes ou defeitos. Nessa medida, os programas levados a cabo esgotam-se no esforço de identificação precoce dos mais capazes, na esperança de que os melhores na altura da identificação e seleção sejam também os mais aptos no futuro.

Isso pode originar efeitos perversos, como os referidos por Barnsley e colaboradores (1992). Segundo estes autores, em todas as atividades em que ocorre seleção, encaminhamento e experiência diferenciada, o fenómeno das distribuições etárias assimétricas faz-se notar, pelo que o sucesso acaba por resultar de uma vantagem cumulativa. Por outras palavras, se em idades prematuras forem tomadas decisões acerca de quem é considerado, ou não, “talento”, se os “talentosos” forem separados dos “não talentosos”, e se aos primeiros for proporcionada uma experiência superior, então estão criadas as condições para se conferir uma excecional vantagem a esse conjunto de praticantes que nasceu mais próximo da data de referência.

Assim, os jogadores identificados como especialmente dotados, i.e., como talentos, são sujeitos a um processo de treino sistemático e passam a participar em competições formais de nível superior. Como tal, vão dispondo de mais e melhores oportunidades para apurarem as suas qualidades e capacidades no âmbito da performance desportiva. Paralelamente, prejudicam-se as condições de prática dos jogadores com idade biológica mais baixa e estatuto maturacional mais atrasado, porque estes são obrigados a competir com jogadores mais velhos, mais altos e mais fortes, o que os coloca em clara desvantagem (Helsen e colaboradores, 2000). Em conformidade, o fisiologista nórdico Bengt Saltin (2007) argumenta que na identificação e desenvolvimento de talentos no contexto do desporto, a maturação biológica deve ser levada em consideração em estágios iniciais do desenvolvimento do talento, ao invés da idade cronológica.

Repare-se que os trabalhos seminais de Anders Ericsson têm proporcionado informação preciosa e conhecimento relevante para quem se interessa pela preparação e pelo encaminhamento de seres humanos, rumo à excelência. Numa das suas obras mais recentes – “Número uno. Secretos para ser el mejor en lo que nos propongamos” – que publicou com Robert Pool, em 2017, Ericsson reforça a ideia de que o suposto talento inato parece desempenhar um papel secundário no desenvolvimento da excelência. Na verdade, fortes evidências sugerem que altos níveis de desempenho estão, em grande parte, relacionados com ambientes estimulantes de aprendizagem, tempo efetivo de prática de qualidade e elevados níveis de motivação e empenhamento.

Por sua vez, Syed (2010) sustenta que mesmo os prodígios infantis, que podem parecer ter chegado ao topo em metade do tempo, na realidade concentraram quantidades significativas de prática no curto período entre o nascimento e a adolescência.

Ericsson, Krampe & Tesch-Römer (1993) cunharam a expressão “prática deliberada” para designar a experiência altamente estruturada, direcionada para objetivos relevantes, com o intuito de melhorar o desempenho numa dada atividade. Por definição, tal prática consiste em atividades que requerem um grande esforço e não são, necessariamente, agradáveis. Neste contexto, tem sido proposta a “regra dos 10 anos”, ou 10 mil horas, como o tempo mínimo necessário para se conseguir obter efeitos significativos.

Se vários estudos têm permitido reforçar o argumento de que existe uma relação diretamente proporcional entre o tempo de prática, acumulado numa atividade e o nível de desempenho, conseguido pelos praticantes nessa atividade (Abernethy, 1994; Hodges & Starkes; 1996; Helsen e colaboradores, 1998), outros trabalhos e reflexões têm mostrado que a prática altamente estruturada não é, por si só, suficiente para induzir desempenhos superiores (e.g., Scanlan e colaboradores, 1993; Burland & Davidson, 2002; Araújo e colaboradores, 2010). De facto, o acesso a níveis de excelência desportiva, para além de implicar a compatibilização da quantidade com a qualidade da prática, requer que se equacione a influência de outros fatores, tais como a adequada condução do processo de treino, os efeitos da maturação e o apoio parental.

Considerando que, para chegar à excelência, é imprescindível acumular uma experiência de vivências relevantes, em quantidade e qualidade, o talento carece de validação, o que significa que o jogador só desponta verdadeiramente depois de exposto ao processo de treino e à competição (Garganta, 2009).

VER TALENTO … PARA ALÉM DO ÓBVIO
“As sociedades atuais enredam-nos de tal forma no mito do melhor e do mais apto que somos conduzidos a pensar nos talentos como em algo que brota espontaneamente da terra.”
Malcolm Gladwell

A partir da segunda metade do século XX, assistiu-se a um forte incremento da quantidade de tempo que as pessoas passaram a dedicar a determinadas atividades, começando a praticar, ainda que informalmente, em idades mais baixas. Concomitantemente, verificou-se um apuro das metodologias de aprendizagem e treino.

Note-se que a maioria dos executantes extraordinários numa dada atividade, receberam influências e estimulação importante na sua infância e/ou adolescência, o que os levou a vincularem-se a ela. No entanto, nem todos podem atingir o nível de executantes de elite em grande parte das atividades, devido a constrangimentos de natureza física e/ou psicológica, ou até por motivos relacionados com o tempo e a qualidade de prática, bem como a idade em que foram adquiridas e desenvolvidas as respetivas habilidades e competências.

Sabendo-se que até ao momento não foi encontrado nenhum gene, ou grupo de genes, que permita prognosticar o sucesso em futebol, percebe-se que a excelência desportiva emerge da interação das singularidades biológicas do indivíduo e das suas adaptações específicas às condicionantes dos ambientes onde ocorre a performance. Neste contexto, tem-se destacado a influência da data e do local de nascimento, a quantidade e a qualidade do treino, a qualidade dos treinadores, o apoio parental e a cultura desportiva (Williams e Hodges, 2005).

Obviamente, há caraterísticas físicas herdadas que condicionam, à partida, o nível de execução em algumas modalidades desportivas. Por exemplo, no atletismo, em provas de velocidade e nos saltos, o nível de expressão dos atletas depende, significativamente, da proporção de fibras de contração lenta e de contração rápida do músculo esquelético, bem como de particularidades relacionadas com a coordenação intramuscular, entre outros aspetos. No basquetebol, a estatura e a morfologia corporal são comummente apresentadas como argumentos relevantes. Mas, porque neste caso se trata de uma atividade de dominante tático-estratégica, a estatura só fará a diferença se no mesmo jogo coexistirem jogadores claramente mais altos do que outros. Ironicamente, dizemos que, desde que os jogadores sejam altos, a altura não é o mais importante no basquetebol.

Aliás, pode constatar-se que as performances de alto nível e os recordes conseguidos pelos atletas contemporâneos, em várias modalidades desportivas, não têm evoluído por via da modificação do genoma humano nem de alterações significativas na morfologia e na fisiologia humanas. Esse progresso deve-se, em grande parte, ao facto de os praticantes estarem a ser preparados e treinados de modo cada vez mais eficiente (Colvin, 2010).

Por exemplo, tendo em conta a especificidade do futebol e as exigências que os diferentes modos de jogar vão colocando aos praticantes, cada vez mais os pesquisadores vão percebendo que o desenvolvimento do talento e os modos de o reconhecer devem ter em conta as habilidades táticas, nomeadamente no que respeita à qualidade do posicionamento em campo e à tomada de decisão (Kannekens e colaboradores, 2010).

Alguns especialistas sustentam que a maior influência dos fatores genéticos na performance é, sobretudo, a que se relaciona com a capacidade de concentração dos praticantes durante largos períodos de tempo numa dada atividade (Baker e Davids, 2007; Marina, 2010; Ericsson e Pool, 2017). No entanto, sabe-se que a paixão por uma determinada atividade ou área leva a que lhe dedique maior atenção e tempo. E com isso crescem as probabilidades de se melhorarem conhecimentos e competências, o que significa que também a capacidade de concentração pode ser aprendida e/ou induzida.

Em síntese, pode dizer-se que ninguém nasce com um conjunto de potenciais fixos para jogar futebol e, como tal, não há limites pré-estabelecidos para o que se pode aprender ou evoluir. Deste modo, a formação, a aprendizagem e o treino não são meios para nos levar apenas a alcançar o nosso potencial previamente estabelecido, mas para o desenvolvermos, elevando-o à medida que vai sendo solicitado e transformado. Não se trata, portanto, de alcançar um determinado potencial, mas de o ir criando e melhorando, à medida que se vai praticando de modo intencional, tornando possíveis coisas que não o eram antes.

Assim sendo, para se perceber como evolui o talento desportivo, impõe-se o conhecimento e a reflexão acerca da qualidade conferida ao processo de formação, nomeadamente no que toca à arte de compatibilizar a quantidade com a qualidade do treino e competição, de modo a otimizar o nível dos praticantes. Uma prática adequada, consumada em ambientes estimulantes e com pessoas competentes, pode projetar qualquer ser humano para patamares de realização inimagináveis. Então, a grande questão que se justifica colocar, não é “Como detetar talentos?”, mas “Que circunstâncias importa criar para que o talento possa despontar e evoluir?” (Garganta, 2009).

Deste modo, afigura-se recomendável aguardar que, tanto quanto possível, as diferenças etárias e de maturidade dos aspirantes a jogadores se esbatam, de modo a que se torne mais viável e segura a tomada de decisão quanto à identificação e à seleção dos mais proficientes. Tal justifica que em vez das parcas e avulsas sessões de “deteção de talentos”, os clubes tendam a proporcionar condições adequadas de treino sistemático devidamente orientado e de competição de boa qualidade, a um vasto número de praticantes. Então, o período dedicado à identificação de talentos deverá coincidir com o tempo de desenvolvimento e atualização do desempenho dos praticantes em resposta ao treino e à competição, o que possibilita dilatá-lo no tempo, tornando-o mais válido, consistente e eficaz (Garganta, 2011).

Na verdade, o talento não é teórico ou abstrato, mas algo que se manifesta, essencialmente, através da ação. Por isso, admitimos que a genialidade está diretamente relacionada com o forte compromisso numa atividade, com a perseverança e com a capacidade de agir em ambientes de forte pressão percetiva e decisional.

Repare-se que o corpo humano tem preferência pela estabilidade, mas para chegar à excelência é imprescindível sair da zona de conforto. A prática eficaz, ao ser levada ao limite das possibilidades, requer esforço significativo, atenção e muita concentração. Mas não basta esforçar-se mais e mais; é imprescindível que se aprenda a aplicar e a gerir o esforço de maneira cada vez mais ajustada, parcimoniosa e inteligente, tanto mais quando a atividade apela a comportamentos de pendor estratégico-tático, como é o caso do futebol.

TALENTO INDIVIDUAL VERSUS TALENTO COLETIVO
“Muitos creem que o talento depende da sorte; ninguém pensa que a sorte pode depender do talento.”
Leonardo da Vinci

Os futebolistas excecionais são, na maior parte das vezes, uma mais-valia para as equipas que integram. Contudo, tendo em conta a miríade de jogadores e de equipas de futebol que se expressam aos mais altos níveis do rendimento desportivo, a verdade é que em grande parte das equipas se trata de conseguir que um grupo de jogadores não necessariamente extraordinários, produzam jogos e resultados extraordinários.

No entanto, sendo o termo “talento” comummente conotado com a proficiência individual dos jogadores, parece paradoxal que o foco não seja mais orientado para o talento coletivo. Não obstante, diferentes pesquisas têm destacado a importância da prática individual para a construção do talento, mesmo em atividades de expressão coletiva. Tal vem corroborar a ideia de que, enquanto no alto rendimento se torna nuclear a construção da equipa, na formação o foco deve orientar-se em larga medida para os modos de fazer progredir e desenvolver cada um dos praticantes. Claro que, tanto o jogador como a equipa são importantes em qualquer momento, mas a incidência do processo vai variando no que respeita ao direcionamento da intervenção. Por exemplo, Baker e colaboradores (2003) concluem que, no âmbito da prática de jogos desportivos de equipa, os jogadores de elite se diferenciam dos demais por acumularem mais horas de treino de observação (vídeo), de competição, bem como de treino coletivo e individual.

Também Helsen e colaboradores (1998) referem que no contexto dos desportos coletivos devem ser consideradas duas formas possíveis de prática sistemática e intencional: a prática individual e a prática de equipa. Estas duas formas de prática têm sido consideradas separadamente porque é provável que o contributo relativo de cada uma se altere ao longo do percurso que configura a carreira de um jogador, ou mesmo no decorrer de uma época desportiva.

Por sua vez, Starkes & Ericsson (2003) referem que os jogadores de futebol têm um objetivo comum (ganhar o jogo), mas que cada um desempenha funções com finalidades distintas (guarda-redes, defesas, médios, avançados) e possui expectativas diferentes. Os mesmos autores acrescentam que a representatividade das situações de jogo difere em função do papel de cada jogador dentro da equipa, fazendo com que, provavelmente, os mecanismos que influenciam o desempenho superior de um avançado de elite se diferenciem dos de um guarda-redes do mesmo nível de rendimento.

Numa revisão de estudos a propósito da aprendizagem de diferentes tipos de habilidades, Ericsson (1996) conclui que o nível de desempenho é determinado pela quantidade de tempo despendido a praticar tarefas bem definidas, com grau de dificuldade apropriado a cada indivíduo, adequado feedback e oportunidades para repetir e corrigir os erros. Esta constatação deixa perceber, desde logo, não só a importância atribuída à harmonização da quantidade da prática com a respetiva qualidade, mas também a relevância da individualização dos estímulos, ainda que tendo em conta o seu enquadramento coletivo. Tal recomenda que se pondere os constrangimentos específicos relacionados com as exigências particulares do jogo e do treino para jogar, mas também as singularidades de cada praticante.

Neste âmbito, e em complemento com as práticas espontâneas e informais em idades baixas, a formação nos clubes desportivos adquire uma importância fulcral, visto que estas instituições podem proporcionar o desenvolvimento e a atualização do talento das pessoas envolvidas neste processo.

No que respeita aos jogadores, a investigação tem permitido chegar a duas conclusões relevantes: (1) os praticantes mais proficientes, para além de investirem maior esforço mental e físico na respetiva atividade, dedicam mais tempo às habilidades que não dominam e não renunciam a práticas menos agradáveis; (2) o recurso a testes físicos, no âmbito da deteção de talentos, durante as primeiras fases do desenvolvimento desportivo, e particularmente no que respeita à pré-adolescência, deverá ser devidamente enquadrado.

Segundo Lidor e colaboradores (2009), os testes físicos podem contribuir apenas para caraterizar componente física do desenvolvimento do talento no desporto. Fatores adicionais, como a preparação psicológica e o apoio social devem ser tidos em consideração, de modo a obter um quadro mais abrangente das competências que permitem ao praticante atingir os mais elevados níveis de proficiência desportiva.

OS TALENTOS USAM O ERRO PARA EVOLUIR
“Um erro, considerado em relação a um sistema de referências, pode tornar-se um acerto noutro tipo de sistema.”
Edgar Morin

A capacidade de aprender a partir da experiência é uma das facetas mais notáveis do comportamento humano e a caraterística mais marcante dos indivíduos que se iniciam numa nova atividade é cometerem erros frequentes (Tani, 1981).

A relação entre conhecimentos e competências de cada praticante conduz a discrepâncias entre as ações que pretendem realizar e aquelas que conseguem, de facto, consumar. O que vulgarmente se designa por “erro” situa-se nesse hiato entre o objetivo que se pretende atingir no curso de uma determinada ação e o resultado realmente conseguido aquando da sua efetivação. Mas, por vezes, está também relacionado com a diferença entre a intenção e o objetivo do praticante quando comparados com a perspetiva do observador.

De facto, a aprendizagem humana processa-se essencialmente por ensaio e erro. Como tal, não experimentar com medo de errar inviabiliza a aprendizagem. Todavia, não raramente desmerece-se o papel do “erro” enquanto elemento estruturante da aprendizagem humana. Neste sentido, em vez de este ser tido em conta enquanto indicador da maior ou menor adequação à respetiva finalidade, ele é recorrentemente perspetivado no seu conceito restrito de indicador negativo do resultado da ação. Neste contexto, a sua ocorrência tem uma conotação negativa, sendo identificada com algo que impede a aprendizagem, em vez de ser perspetivado como aquilo que a pode viabilizar.

No âmbito do processo de ensino e treino do futebol, para que ocorra aprendizagem é necessário que os executantes vivenciem situações inesperadas e aleatórias, o que inevitavelmente acarreta a ocorrência de “erros” e obriga a encontrar modos de os ultrapassar. Nestas circunstâncias, o erro pode e deve ser aproveitado para potenciar o desenvolvimento dos praticantes, permitindo que cada um evolua à medida dos acertos e desacertos do seu próprio desempenho e não em direção a um modelo abstrato que serve a todos e a ninguém (Garganta, 2006, 2007).

Williams e Hodges (2005) destacam a importância do erro no processo de ensino-

aprendizagem/treino, ao defenderem a necessidade de os jogadores serem estimulados a obter a solução para os problemas, por tentativa e erro. Como refere Tani (1981), as “performances erradas” aumentam o reportório de experiências dos sujeitos, e por elas serem inerentes ao processo de aprendizagem, a sua frequência, por si só, não pode ser um verdadeiro problema.

Note-se que a depreciação do erro desencoraja a tentativa, reduzindo a disposição dos jogadores para arriscar e para procurar caminhos inovadores. Dado que se aprende fazendo, quem não tentar não erra, mas também não aprende (Garganta, 2004). De facto, não é a repetição mecânica que concede automaticamente benefícios aos praticantes, mas sim o ajustamento da execução, uma e outra vez, até se aproximar do objetivo, tolerando mais erros a princípio, à medida que se vão expandindo os limites (Ericsson e Pool, 2017).

Como reporta Goleman (2014), uma prática inteligente inclui sempre momentos em que o executante recebe um retorno sobre o seu desempenho, i.e., feedback, que lhe permite reconhecer os erros e corrigi-los. Praticar sem esse retorno impossibilita chegar ao topo; e é também por isso que os atletas e equipas de estatuto mundial têm treinadores. Todavia, para além desse retorno ou feedback extrínseco, proporcionado por fontes externas, cada vez se afigura mais importante promover o recurso ao denominado feedback intrínseco, ou seja, à consciência que o atleta vai desenvolvendo no que respeita ao próprio desempenho. Desse modo, o praticante vai aprendendo a sentir e a identificar os desvios ao comportamento ou ação desejados, mesmo na ausência de fontes externas. Por outras palavras, confere intencionalidade ao curso da ação, para além de se tornar mais autónomo e primeiro responsável pelas ações que executa.

DO TALENTO PARA PROMOVER TALENTO. PENSAR E AGIR DIFERENTE
“Se queres resultados em um ano, semeia; se queres resultados em dez anos, planta; se queres resultados que perdurem séculos ou milénios, forma e educa.”
Adágio chinês

Não se conhece exemplo de algum ser humano que tenha desenvolvido habilidades extraordinárias sem ter sido exposto a uma prática intensa, prolongada e adequadamente orientada, o que significa que não existem atalhos para o talento. A informação e o conhecimento disponíveis na literatura da especialidade mostram que o talento resulta da interação de atributos atualizáveis dos praticantes com as oportunidades que lhes são proporcionadas pelo meio envolvente.

Como foi referido, nem todo o tipo de prática conduz ao êxito. Milhares de horas de prática podem ajudar-nos a ser melhores, mas não nos tornam necessariamente excelentes. Se a prática espontânea, ingénua e por ensaio e erro se afigura importante em idades baixas, não é menos importante que lhe suceda uma prática sistemática, intencional, com objetivos concretos e bem definidos.

Deve dizer-se que atualmente não existe sustentação científica para identificar os fatores do talento no futebol, tanto mais que não se dispõe de indicadores e critérios que permitam pressagiar o rendimento superior. Não obstante, sabe-se que para chegar à excelência fazem falta muitas horas de atividade bem orientada, intensa e de elevada qualidade, consubstanciadas na assimilação de uma cultura para treinar e jogar. Isso exige prática continuada, dirigida por objetivos ajustados e realizada grande parte das vezes fora da zona de conforto, mas sempre estimulante e motivante, bem como feedback de qualidade, extrínseco e intrínseco.

A ciência e a vida mostram-nos que os seres humanos mais talentosos são os que foram capazes de rejeitar lugares-comuns e mitos dominantes. Não se deixaram influenciar pela ideia paralisante de que as pessoas já nascem dotadas de talento ou que as suas habilidades e competências estão limitadas pelo património genético. Tão pouco acreditaram que, se praticassem muito, automaticamente alcançariam a excelência. E perceberam que a evolução ocorre à medida que o potencial talento que vai despontando, serve de trampolim para o desenvolvimento e a atualização do talento que se aperfeiçoa e renova, gerando níveis de expressão cada vez mais elevados.

Ou seja, o talento não é um dom que se tem ou não se tem. Como refere Colvin (2010), um excelente desempenho depende muito mais de nós do que aquilo que imaginamos. Percebe-se assim que os executantes excecionais não são supercriaturas com supergenes raros, mas são parte de uma dedicação extrema, de vontade de se entregarem mais, de sofrer mais e de arriscarem para alcançar melhores resultados (Shenk, 2011).

Sendo o talento contextual e transitório, admitimos que a sua identificação e desenvolvimento podem ver-se significativamente condicionados pelos nossos desejos, crenças, convicções, conhecimentos e competências.

Em cada domínio da atividade humana, uma comunidade apaixonada tende a incentivar os seus membros a explorarem a verdadeira extensão dos seus talentos (Robinson e Aronica, 2010). Deste modo, no futebol, a combinação de conhecimentos, energias e vontades pode ajudar a que mais crianças, jovens e adultos encontrem razões para perseguirem os seus sonhos e os guie até níveis supremos.

O presente artigo, que temos muito gosto em partilhar, é um modesto contributo para ajudar a cumprir esse desígnio.

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JÚLIO GARGANTA, professor
Doutor em Ciências do Desporto e professor da Faculdade de Desporto da Universidade do Porto (FADEUP), coordenou o Gabinete de Futebol, de 1992 até 2015, e é membro do Centro de Investigação, Formação, Inovação e Intervenção em Desporto, e do Centro de Estudos dos Jogos Desportivos. Os seus principais interesses centram-se nas áreas do desenvolvimento e da identificação de talentos, bem como da modelação do treino e do jogo de futebol. Nos últimos 25 anos tem vindo a colaborar na formação de professores e de treinadores na Europa, em África, na Ásia e na América do Sul. No âmbito da observação e da interpretação do jogo de futebol, desempenhou funções no Futebol Clube do Porto, no Sporting Clube de Portugal e na Seleção Nacional AA de Portugal, com presença nas fases finais do Euro’2012, na Polónia/Ucrânia, e no Campeonato do Mundo Brasil’2014.


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4 de Janeiro 2018
Redigido por

Júlio Garganta

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