Podcast: a liderança de um departamento clínico, com Evert Verhagen

Portugal Football School

Professor e investigador neerlandês foi um dos oradores na conferência internacional “Ciência e Futebol”, da Portugal Football School.

Os atributos de liderança são, hoje, mais definidores de um bom profissional da medicina desportiva do que propriamente as suas capacidades técnicas e profissionais. Porque a comunicação é a chave do sucesso da estrutura médica que serve uma equipa e é fundamental que treinadores e jogadores percebam o que fazem - e porque fazem – no âmbito da prevenção de lesões.

Este e outros temas estão em destaque no 42.º episódio do podcast “Ciência e Futebol”, do Portugal Football Observatory.

Evert Verhagen, de 46 anos, foi um dos oradores na conferência internacional “Ciência e Futebol”, que a Portugal Football School organizou a 29 e 30 de abril e reuniu na Cidade do Futebol cerca de 250 participantes.

Pode escutar a entrevista aqui ou nas principais plataformas de podcast disponíveis na web.

A entrevista em português:

Por que participou nesta conferência internacional e quais são os benefícios de o fazer?
Conhecer colegas que têm um interesse semelhante na saúde dos atletas. Neste caso, os jogadores de futebol e o futebol. E penso que o benefício de um encontro como este é que não só se encontram colegas cientistas, mas também investigadores de carreira mais jovens e profissionais médicos mais jovens, que me inspiram tanto quanto eu pareço inspirá-los.

Na sua apresentação menciona que a liderança e as capacidades de gestão são ferramentas inestimáveis para os departamentos médicos desportivos. Pode explicar melhor a ideia?
Fazemos muita pesquisa sobre lesões no futebol. Portanto, são vários os programas de exercícios que propomos e todos parecem funcionar muito bem. Todos eles parecem reduzir significativamente as taxas de lesões e, igualmente importante, têm um impacto significativo na disponibilidade e desempenho dos jogadores. Mas tudo isto em ambientes controlados, onde entramos com todos os nossos instrumentos de investigação e com todos os nossos controlos de investigação, o que afasta o cenário em que estudamos estas intervenções da realidade, o contexto real em que estes jogadores jogam, no qual os departamentos de saúde e performance precisam de implementar este tipo de exercícios. O que fazemos é implementar a ciência novamente, tentamos imitar a realidade e aplicar as nossas provas à realidade. Mas, ainda assim, todas estas intervenções são desenvolvidas a partir de um conceito teórico e não a partir do contexto prático real no qual precisam de funcionar. A fim de colmatar essa lacuna, penso que precisamos de olhar de forma diferente para a maneira como abordamos esta questão e não tanto para as ferramentas. Olhar menos para as ferramentas fundamentais que temos disponíveis e mais para os conjuntos de competências sociais que temos disponíveis para nos certificarmos de que todos no seio da organização, desde o jogador até à gestão superior, são capazes de compreender o que tentamos fazer e porque o tentamos fazer e apoiar o nosso trabalho a partir das suas próprias funções. É por isso que penso que a liderança é de importância vital, uma ferramenta inestimável na nossa batalha contra lesões e problemas de saúde.

É por isso que, de certa forma, se fala de uma mudança de paradigma? Um médico de equipa evoluiu de simplesmente tratar atletas para a gestão de uma equipa multidisciplinar mandatada não só para proteger a saúde deles, como também para se certificar de que estão no auge do seu desempenho…
Sim, podemos vê-lo desse prisma, mas não lhe chamaria uma mudança de paradigma. Eu diria que, ao longo dos anos, temos vindo a compreender o valor da disponibilidade dos jogadores e como aplicar esse valor, por isso temos uma grande caixa repleta de ferramentas e agora precisamos de dar o próximo passo e também de nos desenvolver a nós próprios como bons construtores que sabem como utilizar estas ferramentas. Eu não diria que é realmente uma mudança de paradigma, mas antes uma forma nova de interpretação. Agora que a temos, como vamos utilizá-la?

Qual a importância da comunicação nesse processo?
Vital. Se não falarmos, se não comunicarmos, se não estivermos abertos às opiniões de outras pessoas e se os outros não estiverem abertos às nossas opiniões ou visões sobre como alcançar certos elementos, deparamo-nos com uma barreira. Penso que a dificuldade que existe é que talvez outras pessoas no seio de uma organização desportiva profissional como um clube de futebol de elite não queiram comunicar fora das paredes do seu departamento, porque força e condiciona. “Treinar, esse é o meu papel. Análise de dados, esse é o meu papel.” Mas todos precisamos de compreender que estes diferentes papéis interagem uns com os outros e não podem passar uns sem os outros, e isso significa que precisamos de comunicar uns com os outros. Então quem inicia esta discussão, ou quem inicia o diálogo em termos de saúde do jogador? Penso que o departamento de saúde e performance tem de ser aquele que dá o primeiro passo e que tenta criar um ambiente de diálogo.

Quando se trata de prevenção de lesões também é visível que há muito espaço para melhorias. O que é que falta exatamente?
Essa é uma boa pergunta. Se olharmos para todos os estudos que temos, o que falta é... Bom, devia voltar à questão da comunicação e educação, penso eu. Muitos jogadores não gostam dos exercícios que temos porque são um extra ao que normalmente fazem. Estes exercícios não são divertidos de fazer. Alguns são até talvez um pouco dolorosos no início, como o exercício Nordic hamstring. Eles odeiam esses exercícios, e mesmo assim sugerimos estes exercícios e continuamos a dizer-lhes: "Tens de fazer isto, isto é bom para ti". Mas nós não os educamos. Porque é que o exercício é bom para eles? O que faz este exercício? E a dor que sentem, quão má é? Quão boa é? Irá desaparecer? Não temos em conta todos estes fatores contextuais em torno dessas mensagens que lhes transmitimos, e é realmente uma abordagem do topo para a base, em que dizemos a alguém "precisas de fazer isto, isto é bom para ti". Depois, quando eles não o fazem, pensamos que são estúpidos por não aceitarem as nossas provas. Temos de utilizar outra perspetiva, tentar fazê-los compreender e dominar os exercícios, e depois provavelmente vêm ter connosco e dizem, "Doutor" ou "Coach, aquele exercício que fizemos na semana passada, sei que me magoou um pouco, mas sei que é bom para mim. Gostaria de fazer mais destes exercícios".

Portanto, tem de haver uma transferência de conhecimentos eficaz para que todos saibam exatamente o que estão a fazer…
Sim, mas essa transferência de conhecimentos tem de ser da base para o topo, em vez de ser do topo para a base. Penso que talvez seja essa a mudança de paradigma a que se estava a referir.

Ouvi um pouco do seu podcast, que se chama "Pearls of Performance" e no qual conversou com vários líderes no domínio do desporto. Também se vê a si próprio como um líder?
Não. Mas isso é o que digo no meu podcast, também. Falei com as pessoas e ninguém mencionou ver-se a si próprio como um líder. Penso que essa é uma boa capacidade de um líder. Toda a gente é inerentemente um líder, e o facto de as pessoas manterem esse traço perto de si próprias e manterem essa informação como algo pessoal faz com que temam não serem um líder. Essa é, de facto, uma das componentes-chave para ser um bom líder.

E ser um bom líder provavelmente melhora o processo de comunicação...
Sim, a comunicação é uma componente-chave e se conseguirmos lidar bem com isso, esta melhorará dentro da nossa equipa e das pessoas à nossa volta, com certeza.

Quais são, na sua opinião, as perceções dos treinadores sobre a aplicação da investigação das ciências do desporto aos seus métodos?
Penso que eles acham que é inestimável, mas principalmente do ponto de vista da ciência dos dados. Existem muitos dados por aí, o GPS está a medir as distâncias do futebol: velocidade, número de sprints, acelerações, desacelerações, ritmo cardíaco, etc. Assim, todos os dados estão disponíveis e existem ferramentas inestimáveis na elaboração de estratégias de jogo, planos de desempenho e treino de força e condicionamento, mas sem a devida comunicação e compreensão do significado destes dados, não só para um departamento de força e condicionamento, ou de um departamento de estratégia, mas também para o departamento de saúde. Penso que se perde aí muito valor de todos os dados disponíveis. Portanto sim, as ciências do desporto são consideradas extremamente valiosas em termos de desempenho. Penso que precisamos não de convencer, mas sim de compreender e educá-los quanto ao facto de serem também ferramentas inestimáveis para a saúde e para a disponibilidade do desempenho dos jogadores.

Como podemos fazer com que isso aconteça, por exemplo, na relação entre as equipas médicas e os treinadores?
Há aí um paradoxo engraçado, porque a única forma de podermos fazê-lo é utilizando esses dados para mostrar como os dados se relacionam com a saúde. Na verdade, trata-se de obter mais dados para lhes mostrar o valor (impercetível) dos dados, e a partir daí podemos educar e comunicar. É preciso comunicar em termos de resultados que as pessoas compreendam. Ou seja, se os abordamos a falar de competências sociais e a falar de liderança e comunicação, está fora do seu domínio. Mas se os abordarmos e dissermos: "olha, se mudarmos isto, isto muda nos dados e isto vai melhorar a saúde e a disponibilidade e o desempenho dos jogadores", então de repente temos algo de que podemos falar porque se torna tangível, e depois podemos traduzi-lo para o seu contexto e depois sim, penso que teremos uma abertura para um diálogo adequado. Porque então a próxima pergunta é "o que precisamos para conseguir isto"? É aqui que entra a liderança.

Trabalha frequentemente com investigadores portugueses. Qual é a sua opinião sobre o seu trabalho nesta área temática?
De futebol e saúde?

Sim.
É de classe mundial, a sério. É realmente positivo para mim poder trabalhar com estes investigadores. Há muita coisa a acontecer, e penso que a força do que se tem aqui em Portugal é o facto de estar tudo centralizado na Cidade do Futebol, onde todas as equipas se juntam, mas também onde há educação em curso, ligada às universidades. Mas está tudo centralizado e interligado e não é "agora cada um segue o seu próprio caminho", o que não só fornece orientações, mas também nos permite aprender uns com os outros dentro dessa componente centralizada.

Que conselho daria a um estudante universitário que desejasse seguir a sua carreira e tornar-se também um cientista desportivo?
“Mantém a curiosidade”. É o único aspeto que importa. Não, não penses que daqui a dez, quinze anos queres estar a um certo nível porque não sabes se isso vai funcionar. A única coisa que me faz feliz de manhã, quando me levanto, é quando tenho um novo desafio ou uma nova pergunta, e também o facto de poder ajudar outros investigadores a alcançar os seus objetivos e a responder às suas perguntas.

Foi esse o conselho que recebeu quando começou?
Não.

Qual foi o melhor?
Penso que foi o de trabalhar arduamente, algo que eu faço, mas que julgo ser apenas metade do conselho. Trabalha-se muito, mas também se brinca muito. Também é preciso desfrutar da vida. Esse equilíbrio tem de estar presente.

O que mais o orgulha na sua carreira nas ciências do desporto?
Pergunta difícil. Fazem-me esta pergunta muitas vezes, mas preciso sempre de pensar no assunto. O que mais me orgulha é ver um doutorando a defender a sua tese de doutoramento. E não existe um de que me orgulhe mais em relação a outros. Quando vejo um estudante a ir do zero até à defesa do seu próprio trabalho, com vigor, em frente a um painel e vejo que ainda tem curiosidade e novas questões, isso é o que me deixa orgulhoso. Porque ajudei aquela pessoa a alcançar isso.
 


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4 de Maio 2022
Foto

FPF/André Sanano

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