Podcast: entrevista a Laurent Morel, diretor da UEFA para o futsal

Portugal Football School

É responsável pelo futsal na UEFA há 20 anos. O ex-futebolista suíço comenta o estudo sobre a evolução da modalidade em Portugal e perspetiva o que pode acontecer na Europa nos próximos anos.

Escassos dias depois de ter organizado a 20.ª final europeia de clubes, conquistada pelo Sporting na Croácia, Laurent Morel fala do sucesso português no 10.º episódio do podcast “Ciência e Futebol”, do Portugal Football Observatory.

Tendo como ponto de partida o estudo recentemente publicado pelo observatório sobre a evolução do futsal em Portugal, o responsável da UEFA traça perspetivas sobre o futuro da modalidade, afirmando que “há ainda muito por fazer” no respetivo desenvolvimento.

Laurent Morel entende, por exemplo, que a emergência de seleções de países como França e Alemanha pode, brevemente, dar um novo fôlego ao futsal europeu. Quanto à existência de uma Champions e um Europeu femininos, bem como um Campeonato do Mundo, afirma que o tempo certo para essa “evolução lógica” há de chegar.

Pode escutar a entrevista aqui ou nas principais plataformas de podcast disponíveis na web.

Leia a entrevista em Português:

Acaba de organizar a sua vigésima final de clubes, na Croácia. Como foi atingir essa marca?
Muito gratificante. Esta vigésima final foi extremamente desafiante, como imagina, em face da pandemia, e estou muito contente por termos fechado esta época dificílima a um bom nível, satisfeito com a boa imagem que deixamos. Esta marca é um detalhe, mas com uma curiosidade: a primeira final que organizámos foi em Portugal, em parceria com o Sporting, e passados 20 anos foi justamente o Sporting a conquistar o título.

O Sporting venceu duas Ligas dos Campeões em três anos. O que é que isso diz sobre o futsal português?
Foram grandes conquistas, resultantes do trabalho de muita gente no clube, que ao longo dos anos foi desenvolvendo a sua estrutura profissional. Os detalhes podem fazer a diferença, e o futsal português necessitava claramente de confiança para saber gerir estrategicamente este tipo de jogos. Agora, sabem como ganhar jogos destes. E quanto mais títulos se ganham mais essa confiança aumenta. É, portanto, muito positivo para o futsal português.

O que pensa da Liga Placard? Notou evolução nos últimos anos?
Sim. Creio que tudo começa na visão da FPF, que quis claramente criar um produto. Apareceram patrocinadores e vemos, por exemplo, um piso próprio para os jogos televisionados. A visão de criar um produto que crie retorno é importante. A Liga Placard conheceu uma enorme subida de nível e melhorou a imagem que é dada ao público. Trata-se, hoje, de uma das ligas de topo da Europa.

Uma das conclusões do estudo lançado pelo Portugal Football Observatory é que a vitória no Euro 2018 ajudou a aumentar o número de praticantes e a melhorar os níveis de retenção. Esses resultados surpreendem-no?
Fico bastante impressionado. O estudo está muito completo, com bastantes pontos e indicadores interessantes. Creio que a evolução registada não teve apenas a ver com o título europeu da Seleção. Devemos considerar também, por exemplo, o título olímpico da juventude da seleção feminina sub-19, em Buenos Aires. Essas duas conquistas de 2018 terão contribuído decisivamente para estabilizar e reforçar a evolução que já vinha de trás em termos de praticantes.

Portugal precisará de um novo título para continuar a crescer?
Qualquer título pode ajudar a crescer, portanto é desejável que Portugal volte a vencer. Portugal já é, e continuará a ser, uma das melhores seleções da Europa e do Mundo. Não tenho dúvidas - conhecendo a estrutura, a atividade e os projetos da federação - que se todos estes fatores continuarem a evoluir poderá haver mais títulos, que por sua vez reforçarão o projeto.

Como está a UEFA a auxiliar os países europeus no desenvolvimento do futsal?
A principal via são as competições. Temos cinco: a de clubes, a de seleções, a feminina, a de sub-19 e as qualificações para o Mundial e o Europeu de futsal. Estamos a falar de um investimento de milhões de euros. Há competições que ainda precisam de evoluir e estamos, paulatinamente, a tentar encontrar produtos específicos que possam criar projetos nos países europeus, de forma a auxiliar também as competições a nível interno. Mas o papel da UEFA não se esgota na competição. Apoiamos projetos nas várias federações, nomeadamente através do projeto hat-trick, cujo comité avalia propostas e decide financiamentos para as mais válidas. Um exemplo é a nova arena na Moldávia, cuja construção apoiámos e nos permite elevados níveis de serviço para as nossas organizações. A federação de San Marino também está a construir um pavilhão para competições internacionais. Em França está a desenvolver-se um campo de futsal portátil que atravessa o país, bem como a Ucrânia. São pisos como o que Portugal tem na Liga Placard para as transmissões televisivas mas que servirá para os jogos das respetivas seleções. Isto abre possibilidades de negociar melhores contratos com as TV, porque a imagem melhora.

Em 55 federações que constituem a UEFA, 50 têm campeonatos de futsal. Como avalia isso?
Há alguns países mais pequenos, como Liechtenstein ou Ilhas Feroé, que têm dificuldades. Outros têm outro tipo de desafios, nomeadamente no que respeita a infraestruturas para modalidades “indoor”, como por exemplo o Reino Unido. Mas a maioria da Europa está jogar e a desenvolver-se, tendo pelo menos uma divisão doméstica, quando não duas ou três. Pode considerar-se que o futsal é, hoje, um desporto global.

Em sua opinião que seleções têm probabilidade de brilhar ao mais alto nível nos próximos dez anos?
As que já estão no top 3 - Portugal, Rússia e Espanha - têm condições para continuar a brilhar, porque estão bastante à frente das outras. Mas há outra federações a fazer bons trabalhos e por certo eles começarão a dar frutos. França, por exemplo, já se mostrou no último Europeu, empatando com a Espanha. A Alemanha tem grande planos para uma Bundesliga de futsal, a lançar em setembro. É provável que comecem a aparecer no topo do ranking. São boas federações para ter envolvidas na modalidade, porque nos trazem mercados maiores para o futsal.

Bruno Coelho e Ricardinho estão a jogar em França. Quando o Ricardinho se mudou para Paris deu uma entrevista de dez páginas à "France Football", que pela primeira vez teve um grande exclusivo com um jogador de futsal. Qual foi o impacto da transferência dele para França?
Foi espantoso. Fiquei surpreendido por ver uma revista tão conceituada a dar a capa ao Ricardinho. Serviu para mostrar aos franceses que o futsal existe e tem as suas estrelas. O impacto mediático é sempre importante. Conheço o ACCS [clube de Ricardinho] e sei que já estão a negociar direitos de transmissão televisiva para a próxima época. Compraram, por exemplo, o piso que utilizámos agora na final da Champions League e podem promover o produto, aumentando as audiências mediáticas no país. O clube está a ser uma verdadeira locomotiva do futsal em França e há outros a trabalhar para o alcançarem. Certamente que o prestígio de alguém como Ricardinho teve um forte impacto no futsal francês.

Vê-o como um embaixador da UEFA para o futsal?
Sim, Ricardinho é sem dúvida um bom embaixador, porque está sempre disponível e promove os valores do futsal. É o número um na sua profissão mas continua uma pessoa humilde, é uma honra e um privilégio trabalhar com ele sempre que isso se proporciona. É um grande prazer ter alguém que se coloca ao serviço de uma modalidade como o Ricardinho faz com o futsal.

Na última qualificação para o Europeu jogavam 56 brasileiros, vários deles na equipa da Geórgia, que eliminou a França. Que opinião tem sobre esta naturalização massiva de jogadores?
É um debate recorrente. A primeira observação é que os brasileiros são dos melhores jogadores de futsal! Claro que é algo sobre o qual temos de refletir em cada federação e confederação. A FIFA deve conduzir esta reflexão, visto que é o regulador da modalidade. É muito subjetivo dizer se alguém se naturaliza apenas para jogar futsal ou se joga futsal porque se naturalizou. Há muitos exemplos de brasileiros que deixaram o seu país para conhecer novos países, aprender a língua, apreender os seus hábitos e normas, no fundo viver nesse novo país por muitos anos. As naturalizações acontecem no futsal, em muitos outros desportos e na vida. De qualquer forma, penso que temos de salvaguardar o assunto, com a ajuda da FIFA.

Que expectativas tem para o Mundial da Lituânia?
Grandes. Antes de mais porque o Mundial volta à Europa e o último que aqui se jogou teve ótimas assistências. Além das expectativas sobre o nível do jogo temos uma forte esperança de que possa haver espectadores nos pavilhões. A Lituânia é um país de desportos "indoor". A FIFA escolheu das melhores arenas da Europa e os lituanos têm interesse nos jogos que lá se disputam, seja hóquei no gelo, basquetebol, jogos muito maiores que o futsal. Estão habituados a ir aos pavilhões e muito provavelmente vão apreciar o Mundial de futsal. É o que habitualmente acontece com os eventos de alto nível do futsal: as pessoas vão e depois voltam.

Qual é o maior desafio para tirar o futsal feminino da relativa obscuridade em que ainda vive?
O tempo é o maior de todos, porque a pandemia trouxe ainda maior obscuridade para os projetos de menos dimensão em cada federação. Uma vez mais - e isto é válido para qualquer área do futsal, seja masculino, feminino ou jovem - haverá um crescimento natural, mesmo que não façamos nada por isso. Tenho esperança de que o futsal, que é um desporto atrativo para as meninas e as mulheres, possa, desde logo, crescer naturalmente. Depois, com promoção e investimento similares aos que já existem no futebol feminino, acredito que o futsal vai ganhar mais espaço, maior visibilidade, e as raparigas estarão mais recetivas a jogar. Estou otimista e acredito que o número de praticantes continuará a aumentar de ano para ano, quer a nível nacional, em cada país, quer a nível internacional.

Sente que o primeiro Europeu, realizado em Gondomar em 2019, marca um antes e um depois no que respeita ao futsal feminino?
Certamente. Uns meses antes estive em Buenos Aires, no torneio de sub-18, e fiquei impressionado com o nível delas. Depois vimos os quatro maiores países a competir em Gondomar e foi surpreendente o nível técnico e tático dos jogos. É um excelente produto para consumir na televisão e nos próximos Europeus vamos aumentar quer o nível dos jogos quer o número de equipas participantes.

A UEFA planeia lançar uma Liga dos Campeões feminina?
Será o seguimento mais lógico no desenvolvimento do quadro competitivo. Ainda não estamos lá, porque existem poucas equipas, temos de monitorizar o desenvolvimento do jogo, ver o interesse em torno dele em cada país, se há condições para começar a construir um projeto que leve à criação de uma competição feminina de clubes. É a evolução lógica, mas ainda é cedo para perceber quando acontecerá.

Acredito que o mesmo se passe com um Mundial feminino. Imagina a FIFA a lançá-lo brevemente?
Imagino que haja conversações sobre isso, porque há três confederações com equipas de alto nível: Europa, Ásia e América do Sul. Mas para ter um Campeonato do Mundo é preciso que toda a gente esteja envolvida, de todas as confederações. Potencialmente isto levará mais algum tempo, mas se houver um novo Mundial a lançar pela FIFA, definitivamente esse pode ser o de futsal feminino. Esperemos que aconteça o mais brevemente possível, porque isso também vai acelerar o crescimento da modalidade.

É inevitável falar de COVID. Como é que a UEFA lidou com as dificuldades para organizar grandes eventos, sabendo que os desportos "indoor" estão provavelmente ainda mais expostos ao vírus?
Foi extremamente desafiante desde que, no ano passado, começámos a perceber que talvez só começássemos a época em setembro ou outubro e teríamos de lidar com todos os protocolos sanitários. O primeiro grande desafio foi a “final eight” da Liga dos Campeões de futebol, em Lisboa. Tivemos de tomar vários aspetos em conta e era uma modalidade ao ar livre. Como referiu, no futsal tínhamos uma ameaça ainda maior. Foi-nos dito que o futsal é 19 vezes mais perigoso que o futebol, não me pergunte porquê 19 vezes, mas o risco é de facto é maior. O desafio foi perceber como podíamos implementar condições de segurança suficientes para as nossas competições. Os factos vieram a comprovar que fomos capazes de fazê-lo. Começámos com as finais do ano passado, em outubro. Depois houve todo o apuramento para o Campeonato da Europa. Foi bastante complicado conciliar todas as restrições de viagens, a testagem, os casos positivos, as quarentenas. No final, realizámos 97 por cento dos jogo previstos e isso prova que é possível, se nos esforçarmos, dar bons exemplos e organizar competições "indoor".

É a favor da implementação de passaportes de vacinação para permitir o regresso do público aos espetáculos desportivos?
Não tenho uma opinião pessoal, mas tudo isso pode evoluir em termos de legislação em cada país, ou até em escala mais larga na União Europeia ou para lá dela. Sim, se o vírus continuar por aí durante muito tempo talvez os adeptos possam ter de provar que é seguro assistirem aos jogos. Isso, juntamente com a garantia de que poderemos recebê-los e jogar em segurança, poderá fazer com que não haja o receio de os eventos desportivos provocarem infeções e novos surtos da doença. Imagino que poderá ser essa a evolução lógica para os nossos eventos.

Voltando aos seus 20 anos de UEFA: como é que um antigo futebolista e empregado numa transportadora aérea acaba como responsável pelo departamento de futsal?
É engraçado. Fui jogador de futebol, até cheguei a jogar na primeira divisão, e depois fui para a Swissair. Sempre estive de olho na UEFA, que é a poucos quilómetros da minha casa. Houve aqui algum karma, porque fiz a minha entrevista de emprego na UEFA a 11 de setembro de 2001, que não é uma data boa para milhares de pessoas e teve, como sabemos, um grande impacto na aviação [nesse dia ocorreu o atentado da Al-Qaeda que destruiu as Torres Gémeas, em Nova Iorque, matando cerca de 3 mil pessoas]. A Swissair entrou em falência uns meses depois, mas eu já tinha assinado contrato com a UEFA. Propuseram-me este trabalho com o futsal, sobre o qual honestamente sabia pouco. Era especialista em futebol, mas não em futsal. Pensei: "vou começar no futsal mas em cinco/seis meses mudo para o futebol, que é a minha paixão e é no que tenho background." Como vê, 20 anos depois estou no futsal. Aprendi sobre o jogo, conheci as pessoas, percebi os valores e tenho gostado muito desta viagem, que não está acabada porque ainda há muito por fazer. Tem sido uma ótima descoberta, da qual estou a usufruir desde o primeiro dia.

Consegue definir 10 momentos-chave do seu percurso?
É difícil dar-lhes uma ordem de prioridade, foram tantos... Mas há alguns pontos de viragem. Um em 2005, quando para o Europeu da República Checa convidámos todas as federações que não tinham atividade de futsal ou uma seleção nacional. Fizemos um workshop para explicar o que é o futsal e o que ele podia trazer para as federações, inclusive para ajudar o próprio futebol. Depois disto, a cada ciclo tivemos entre 3 e 6 países a começarem com projetos de seleções ou campeonatos nacionais. Um marco importante para o futsal português foi em 2010, quando tivemos a final da competição de clubes em Lisboa. Pela primeira vez tivemos perto de dez mil espectadores num pavilhão, foi um sinal de que poderíamos ir longe. Ter dez mil pessoas num pavilhão equivale a ter 50 ou 60 mil num estádio. A atmosfera do Pavilhão Atlântico foi fantástica e nesse momento percebemos que podíamos jogar nas maiores arenas da Europa. O facto de a cada Europeu termos mais espectadores, mais telespectadores e maior interação nas redes sociais também foi sendo marcante. A audiência global foi sempre subindo, no último Europeu tivemos uma audiência televisiva superior a 30 milhões de pessoas. Espero que ao maior número de pessoas a ver corresponda um maior número de pessoas a praticar. É uma viagem longa, nada está acabado nem adquirido. Temos de ter cuidado, porque há várias ameaças. Também há várias oportunidades, temos de estar sempre atentos a elas e continuar a desenvolver os aspetos que precisam de ser desenvolvidos.

Que mensagem deixaria aos rapazes e às raparigas de Portugal que queiram jogar futsal?
Diria para irem em frente! É um desporto que reflete a sociedade deles, porque é rápido, dinâmico e implica criatividade. O futsal pode fazer vir ao de cima as capacidades deles. Há 20 ou 30 anos todos gostávamos de jogar futebol na rua com os amigos, bastavam duas t-shirts para fazer de baliza e lá íamos nós. Isso hoje é mais difícil, nomeadamente nas cidades, mas ainda é possível fazê-lo nos pequenos campos que vão existindo, o que é muito similar ao futsal. Vão em frente, porque é bom para a saúde e para a mente, especialmente neste momento de pandemia, e é de facto um desporto agradável. 


;
;
12 de Maio 2021
Foto

Harold Cunningham - UEFA/UEFA via Getty Images

Notícias